08 de março de 2021
Thiago Stivaletti, para o Jornal da Mostra
Cena do filme The Wheel of Fortune and Fantasy, de Ryusuke Hamaguchi
Mais do que permitir conhecer as novas obras de cineastas veteranos, um festival de cinema serve para conhecermos os novos nomes, aqueles que estão começando seu trabalho e devem se tornar fortes daqui a algum tempo.
Na Berlinale, um nome brilhou: o do japonês Ryusuke Hamaguchi. Em 2018, ele já havia competido à Palma de Ouro em Cannes com Asako I e II. Agora, saiu consagrado com o Grande Prêmio do Júri, espécie de segundo lugar da competição, por The Wheel of Fortune and Fantasy (A roda da fortuna e da fantasia), no qual confirma o seu estilo no caminho do francês Éric Rohmer (dos contos das Quatro Estações): pequenas histórias do cotidiano que revelam grandes sentimentos e contradições humanos, tudo através de diálogos brilhantemente lapidados.
The Wheel of Fortune and Fantasy contra três histórias que, ao mesmo tempo em que revelam grande simplicidade, flertam com o absurdo. Na primeira, uma colega conta à outra que se apaixonou por um homem que a fotografou num ensaio, mas ele revelou não ter esquecido a ex-namorada. Acontece que a ex é a própria interlocutora, e ela vai imediatamente procurar o ex para saber dos seus reais sentimentos pela outra. Na segunda, um aluno humilhado por um professor de literatura que acaba de receber um grande prêmio pede que a namorada seduza o professor, para criar um grande escândalo – mas o que eles conversam em menos de meia hora acaba indo muito além da cilada.
Na terceira história, um tema caro ao diretor retorna – o do espelhamento entre duas mulheres bem diferentes, ecoando Persona (1966) de Ingmar Bergman. Duas mulheres se cruzam na escada rolante de uma estação de metrô. Elas imediatamente se reconhecem como duas amigas de juventude no colégio. Mas uma revela não ser aquela que a outra pensava – o que não impede momentos de intensa intimidade e transformação pessoal entre duas estranhas.
A DURA VIDA DA POLÍCIA MEXICANA
Único representante latino na competição pelo Urso de Ouro, o mexicano Una película de policias retrata o cotidiano de policiais na violenta Cidade do México. Em tempos de condenação absoluta da polícia por sua violência, o diretor Afonso Ruizpalácios (o mesmo de Museu, com Gael García Bernal) mostra o quanto a instituição é marcada por baixos salários, formação acadêmica excessivamente rápida e desproteção na mão de bandidos bem mais armados do que ela.
O formato escolhido é bastante original: primeiro ouvimos as histórias divertidas e curiosas de uma policial, Teresa; depois, o relato de outro policial, Montoya; depois, descobrimos que eles se casaram na corporação, e ouvimos um relato em duas vozes do casal. Na última parte, descobrimos que Teresa e Montoya não são policiais de verdade, mas atores se passando por verdadeiros policiais. O que era ficção torna-se um registro documental, na maior parte filmado com celulares durante o treinamento policial dos atores.
IRÃ COMPETE COM SEU BOM CINEMA POLÍTICO
Na última década, nenhum país venceu mais Ursos de Ouro do que o Irã. Foram três premiados: A Separação (2011), de Asghar Farhadi, que depois também venceu o Oscar de filme estrangeiro; Táxi (2015), de Jafar Panahi; e Não Há Mal Algum (2020, 44ª Mostra), de Mouhammad Rasoulof – os dois últimos diretores são impedidos de viajar pelas autoridades iranianas.
Em 2021, o Irã saiu sem prêmios, mas apresentou um ótimo representante de seu cinema que mistura manifesto político e drama sentimental: Ballad of a White Cow (Balada de uma vaca branca), que ataca de frente o sistema judicial iraniano e a pena de morte.
O marido de Mina é condenado à pena de morte. Algum tempo depois de executada a sentença, a própria Justiça descobre o verdadeiro culpado do crime e decide recompensá-la com uma soma em dinheiro. Mas ela quer mais: um pedido oficial de desculpas da Justiça, algo que as autoridades não estão dispostas a dar. Ao mesmo tempo, um estranho que se diz amigo do marido morto se aproxima de Mina – logo saberemos que ele é alguém envolvido no julgamento do morto. Excelentes atuações e um drama muito bem conduzido pela dupla de diretores Maryam Moghaddam (uma diretora) e Behtash Sanaeeha, em seu segundo longa juntos.
A EX-IUGOSLÁVIA NUMA PEQUENA FESTA DE FAMÍLIA
Entre os ótimos filmes de diretoras na Berlinale, Celtas, primeiro longa de Milica Tomovic na seção Panorama, encena todo o sentimento da classe média sérvia no início dos anos 90 – quando a Sérvia ainda era parte da antiga Iugoslávia. Marijana e o marido vivem uma crise conjugal, mas ainda assim resolvem chamar os amigos em casa para comemorar os oito anos da filha Minja. A inflação corre solta, não há perspectivas de melhorar de vida. Num entra e sai frenético dos personagens numa casa nada espaçosa, vamos simpatizando com personagens que tentam apenas se virar numa realidade apertada. Num país em que a homossexualidade não é tratada abertamente, uma das amigas morre de ciúme porque a ex-namorada aparece na festa com uma nova mulher, e dois amigos aproveitam um inesperado blecaute para se beijar.
Num primoroso exercício da montagem, Tomovic também dá conta da movimentação das crianças durante a festa – quase todas fantasiadas de personagens do desenho Tartarugas Ninjas, a febre da época. Um filme cheio de afeto e humanidade, que entrelaça bem a vida privada dos personagens com a macropolítica opressiva que os rodeia.