04 de março de 2021
Thiago Stivaletti, para o Jornal da Mostra
Cena do filme
Num momento em que todos querem mais espaço para as mulheres atrás das câmeras, a jovem Céline Sciamma, 40 anos, é a mais nova força do cinema francês. Seu segundo longa, Tomboy (2011) foi aclamado pela crítica com a história de uma menina que desde muito nova se identifica como menino – muito antes da questão trans ganhar a grande mídia. Dois anos atrás, o drama de época Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) entrou em várias listas de melhores do ano e ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes.
Ela reapareceu no Festival de Berlim esta semana com seu quinto longa, Petite Maman (Pequena mamãe), ao lado de outras quatro diretoras que disputam o Urso de Ouro – duas delas alemãs, mais uma iraniana e uma libanesa que assinam a codireção com diretores homens. Petite Maman é mais um filme nascido dos tempos de pandemia – poucos atores, com a maioria das cenas entre apenas dois personagens, no máximo três.
Nelly, uma garota de oito anos, acaba de perder a avó e volta com os pais para a casa no campo onde ela vivia, perto de um bosque. A mãe parte, deixando pai e filha sozinhos. Um dia, Nelly vai até a floresta e encontra uma outra menina, muito parecida com ela, que a leva até sua casa – também muito parecida com a casa da avó de Nelly.
A identificação entre as duas só aumenta, e a história começa a ganhar elementos fantásticos que se mesclam a um drama psicológico sobre as relações femininas dentro de uma família – e como os laços emocionais que ligam avó, mãe e filha são feitos de mistérios insondáveis.
FÁBULA DA GEÓRGIA ENCANTA POR SUA ORIGINALIDADE
Uma fábula da Géorgia encantou no terceiro dia da Competição. Com o sugestivo título de O que vemos quando olhamos para o céu?, o filme conta a história de Lisa e Georgi, que se esbarram sem querer na frente de uma escola na bucólica cidade de Kutaisi. Sem nem mesmo saber os nomes um do outro, eles marcam um encontro num café para a manhã seguinte. De repente, um narrador (de fábula) entra e anuncia: uma maldição vai recair sobre eles, e eles acordarão com aparências diferentes no dia seguinte, e portanto não vão poder se identificar um para o outro.
O diretor Alexandre Koberidze brinca com os recursos da fábula, nos fazendo sentir como crianças acompanhando uma história de feitiços e maldições – quando a transformação vai acontecer, um letreiro pede que nós fechemos os olhos ao primeiro sinal, e só abramos de novo ao som do segundo sinal. Koberidze conduz uma história encantadora que também sai do casal para mostrar com todo amor o pequeno povo de Kutaisi, seu jeito acolhedor, sua paixão pelo futebol, nos jogos da Copa do Mundo e outros torneios assistidos sempre dos mesmos dois bares da cidade. Uma bela surpresa que surgiu como um dos favoritos ao Urso de Ouro ou outro grande prêmio.
OS PERSONAGENS TORTURADOS DE UM GRANDE FILME HÚNGARO
Outro veterano que apresentou um belo filme foi o húngaro Bence Fliegauf. Cria da Berlinale, onde apresentou já seu primeiro longa, é um nome desconhecido no Brasil, cuja obra é marcada por uma extrema crueza. Em Dealer (2004, 28ª Mostra), ele acompanhava um traficante que passa seu último dia de vida visitando seus amigos e clientes. Em 2012, Apenas o Vento venceu o Grande Prêmio do Júri do festival com a torturada história de uma comunidade cigana perseguida e assassinada em Budapeste – em pleno século 21.
Agora, ele volta à proposta de seu primeiro longa com Forest - I See You Everywhere, projeto também adaptado aos tempos de pandemia. São sete histórias curtas em que apenas duas ou três pessoas interagem dentro de um apartamento – marido e mulher, sogra e genro, avô e neta, mãe e filho. O roteiro de forte dramaturgia revolve as entranhas do ser humano: o marido está traindo abertamente a esposa, o filho está tendo um caso com a mulher do pai enquanto este está à beira da morte. Na história mais interessante, um menino adolescente se revolta contra a mãe, uma cristã radical, porque ela não o deixa jogar seus jogos de RPG; ele clama que, assim como os personagens do seu jogo, Deus é apenas uma grande fantasia. Em outra história, duas pessoas que perderam seus parentes decidem contratar um assassino profissional para matar o charlatão que iludiu seus parentes e os levou à morte.
Fliegauf filma tudo com uma câmera na mão próxima a seus atores, num sentimento de grande claustrofobia. Lembra muito o movimento dinamarquês Dogma 95, que projetou Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, mas com uma dramaturgia mais densa, diálogos cortantes e atores à flor da pele.