03 de março de 2021
Thiago Stivaletti, para o Jornal da Mostra
Cena do filme romeno Bad luck banging or Looney porn
Em sua primeira edição totalmente on-line por conta da pandemia de Covid-19, o Festival de Berlim mostrou, no segundo dia da competição pelo Urso de Ouro, como a nova realidade de máscaras e álcool gel está sendo assimilada pela ficção.
Foi em uma comédia muito maluca vinda da Romênia: Bad luck banging or Looney porn (algo como "uma trepada azarada ou pornô maluco"), de Radu Jude. O filme já abre com esse pé no pornográfico: uma professora de história filma a sua transa com o marido com direito a todos os closes possíveis. Ato contínuo, um problema típico dos dias de hoje: o vídeo vaza misteriosamente no site pornô Pornhub e é visto por pais, alunos e professores da escola em que ela trabalha.
O filme é dividido em três partes: na primeira, a professora percorre Bucareste falando ao telefone e tentando tirar o vídeo do ar. Vai ao mercado, à farmácia, à biblioteca, onde uma vez ou outra alguém tira a máscara para falar e é repreendido. Na terceira, ela enfrenta um tribunal no colégio onde leciona, ouvindo os maiores impropérios dos pais, que a querem expulsa da escola. Já a parte do meio é totalmente solta, uma colagem de piadas políticas sobre a história da Romênia que lembra um pouco a montagem livre de um Godard, mas num estilo clown.
O maior mérito do pseudopornô de Jude é mostrar que não estamos sozinhos no Brasil na tragédia do século 21: além da covid, o moralismo conservador e o domínio absoluto das fake news – um dos pais na reunião acredita que Hitler era judeu e montou o Holocausto só para fundar Israel. Seria cômico, não fosse trágico – ou vice-versa.
A LUZ DO CINEMA HÚNGARO
O cinema húngaro, sempre com forte presença em Berlim, também deu as caras no segundo dia da competição. Natural Light, primeiro longa de ficção de Dénes Nagy, traz o rigor fotográfico típico dos filmes daquele país. A história se passa na Segunda Guerra, quando o Exército Húngaro, aliado aos nazistas, envia uma unidade para procurar partisans (traidores) na União Soviética ocupada.
O filme se desenvolve em meio a uma floresta de galhos secos em pleno outono, com a umidade dominando as cenas e os personagens. Depois da morte do comandante, outro oficial, Semetka, sempre introspectivo, precisa assumir o comando. Um tempo dilatado das imagens e a forte presença do ator Ferenc Szabó fazem valer mais este mergulho na Segunda Guerra e suas mil histórias – e nos fazem lembrar de outros grandes filmes húngaros recentes, como O Filho de Saul (2015, 39ª Mostra), de Laszló Nemes, premiado em Cannes.
TINA E O FANTASMA DO PASSADO
Por conta da pandemia, Berlim 2021 conta com poucos filmes pop em sua seleção – aqueles que fazem a alegria da imprensa num festival presencial, com a presença de estrelas. Apenas dois filmes com poucas indicações no Globo de Ouro, French Exit e The Mauritanian, serão exibidos em sessões especiais, fora de competição. Na terça (2/3), o destaque foi Tina, novo documentário da HBO sobre a cantora Tina Turner, de Dan Lindsay e T.J. Martin.
O documentário retraça a relação abusiva que Tina teve com seu primeiro marido e parceiro artístico Ike Turner, com quem foi casada de 1957 e 1976. Em entrevista inédita, Tina aparece aos 81 anos com a tranquilidade de quem deixou tudo para trás. Mas recorda que o sofrimento foi em dobro: mesmo depois de 1976, quando investiu na sua carreira solo, a mídia não parava de lhe perguntar sobre as violências que ela sofreu no casamento. A solução foi escrever uma autobiografia, que ainda rendeu um longa de ficção em 1993 estrelado por Angela Bassett.
Uma história que vale ser lembrada neste momento de auge dos movimentos feministas, de uma artista que abriu o caminho para outras mulheres negras como Beyoncé, Rihanna e Alicia Keys.